A Natureza da Atividade Filosófica

19 de fev. de 2010



por Marco Antônio Franciotti

(...)Não há dúvida de que o homem comum possa passar a vida inteira sem se preocupar com os problemas que rondam os filósofos. Mas ele, conscientemente ou não, está se valendo de ‘motivos’ para tomar as tantas decisões que a vida o obriga a tomar. Se olharmos mais de perto, veremos que esses motivos estão calcados em princípios ou regras morais, ou em informações às vezes genuínas (ou verdadeiras), às vezes equivocadas (falsas). Quer dizer, o homem comum não pára de refletir, de especular. A reflexão, quer ele se dê conta disso ou não, faz parte de sua vida do mesmo modo que faz parte da vida dos intelectuais, sejam eles cientistas ou filósofos. Mas a filosofia é mais do que refletir. Ela é refletir sobre o refletir. A filosofia surge quando a própria capacidade de refletir é posta em questão, quer dizer, refletimos sobre o refletir, quando queremos saber como adquirimos conhecimentos, ou se sabemos realmente aquilo que supomos saber. Por isso que, para Sócrates, o ponto de partida do filosofar é o reconhecimento da própria ignorância. A afirmação ‘só sei que nada sei’ só pode ser feita por alguém que já exerceu uma auto-crítica, que já se debruçou sobre as bases de seus conhecimentos e os avaliou de modo adequado. Muitas vezes, quando fazemos isso honestamente, quer dizer, quando olhamos para dentro de nós mesmos e pesquisamos as razões daquilo que defendemos às vezes tão teimosamente, nada encontramos, e aí ficamos espantados, perturbados, incomodados. Platão chamava esse estado de espírito de thaumazéin, isto é, o espanto da própria ignorância. Esse é o motor do filosofar. É o que nos leva a tentar preencher o vazio, a ausência do saber, a ignorância. Para esclarecer esse ponto, é oportuno comparar a filosofia com a ciência. A atividade do cientista é marcadamente empírica. Ele tenta entender o mundo como ele é dado em sua experiência e, a partir daí, ele procura predizer e explicar os eventos. O cientista via de regra pergunta: "O que causou isso? " Ao tentar responder a essa pergunta, ele recorre a outros eventos que requerem eles mesmos mais explicações. Quando ele se vê às voltas com uma seqüência de eventos interligados, ele pode perguntar: "O que causou a existência das séries? ", ou ainda, "por que esta série e não outra? " Estas perguntas, porém, levam-no para além dos limites da atividade científica, tendo em vista que uma série como essa não é dada na experiência. Esse território, às vezes considerado como obscuro, é a filosofia. Certas questões levam-nos a níveis de abstração que nenhuma investigação empírica pode proporcionar. Elas surgem, pode-se dizer, no final de todas as outras pesquisas, "quando problemas relativos aos fundamentos dos saberes particulares, como a Física, a Matemática, a Geometria, etc., são detectados ou seus métodos de investigação passam a ser questionados. Assim sendo, os problemas filosóficos e os sistemas destinados a resolvê-los são formulados em termos que tendem a se referir aos domínios da possibilidade e da necessidade e não aos da realidade, ou seja, ao que poderia e ao que deveria ser e não ao que é" (Scruton 1981, pg. 12 ff.) Isso quer dizer que nem toda pesquisa fronteiriça aos saberes especiais é filosófica. Quando se tenta resolver problemas filosóficos sem se questionar a validade dos procedimentos adotados, incentiva-se o dogmatismo e a superstição. Por exemplo, no caso da existência da série de eventos, se pressupusermos que Deus é a causa primeira e também a meta final de todas as coisas, acabamos recorrendo a um artigo de fé e não a um saber racional. Essa afirmação tem o mérito de produzir uma dada resposta a quebra-cabeças metafísicos, mas ela possui uma grande desvantagem, que é a de se basear numa suposição que não pode ser colocada em dúvida, e que é por isso mesmo dogmática. Daí não se segue que o filósofo deva necessariamente ser um ateu. Muitos filósofos do passado (e mesmo vários do presente) acreditam em Deus e pertencem a diferentes religiões. Mas quando eles decidem discutir a existência ou não de Deus, eles sabem que não podem simplesmente postulá-la sem maiores problemas. Eles sabem que toda discussão é uma disputa, uma busca da melhor explicação ou da solução de um certo problema. Decidir discutir significa submeter-se ao tribunal final da razão, que não aceita a mera crença incontestável como base de argumentação (cf. Scruton 1981, pg. 14). Tal problemática remete-nos à relação da filosofia com a religião. Sem dúvida que há semelhanças entre o filósofo e o religioso. Ambos procuram refletir sobre questões abstratas, ambos procuram explicações gerais, ambos procuram um princípio ou um conjunto de princípios fundamentais a partir dos quais podemos responder às questões mais importantes que nos afligem. mas há pelo menos uma diferença essencial entre os dois: o religioso encontra o seu princípio fundamental em algo que, em última instância, requer uma crença não justificável em um Ser Superior que explica tudo. O filósofo, por seu turno, procura a verdade ou aquilo que pode ser estabelecido através de bases racionais. Isso nos conduz a uma outra característica importante da atividade filosófica, a saber, a preocupação com a verdade. As questões filosóficas podem muito bem ficar sem respostas, ou podem mesmo propiciar polêmicas intermináveis (como geralmente ocorre). Mas elas são questões de qualquer modo e requerem, por isso mesmo, uma avaliação das razões sugeridas e propostas para que possamos caracterizá-las como verdadeiras ou falsas. Afinal, a filosofia não pode ser um mero aglomerado de proposições retóricas, sem qualquer pretensão de estabelecer princípios sólidos. Ela pode ser definida como uma atividade a partir da qual se estudam métodos e metas das nossas formas diferenciadas de reflexão, a fim de que possamos chegar a conclusões sobre os seus limites e a sua validade. A pesquisa filosófica se dá de uma maneira racional, quer dizer, sem qualquer remissão à fé, visando o estabelecimento de respostas convincentes a questões as mais diversas que fogem ao âmbito das ciências particulares mas que são comumente trazidas à luz por elas.
Muito bem. Já disse que a filosofia tem por função, entre outras coisas, refletir sobre o refletir. Através do filosofar, podemos saber mais sobre a nossa capacidade reflexiva. Por quê? Porque, em assim o fazendo podemos exercer o poder de reflexão mais amplamente, mais efetivamente e com mais precisão. Mas por que é tão importante exercer a capacidade reflexiva? A resposta é simples, mas essencial. Sem refletir, não poder;iamos ser livres. Agir sem refletir significa não ser dono das próprias ações, ou ser movido por causas outras que não a nossa própria razão. Essa é a diferença entre nós e os robôs. Eles não possuem poder de reflexão e por isso mesmo eles não podem escolher por si mesmos o curso de ação que irão adotar. Do mesmo modo, quando adotamos um certo curso de ação ‘sem refletir’, mecanicamente, a gente se assemelha a um autômato, ou a um robô nas mãos do primeiro que passa. É neste momento que fica claro o porquê do filosofar. A ponte entre a filosofia e as outras áreas não é imediata. Mas ela existe. Quando digo que sem refletir seríamos apenas autômatos, eu quero dizer que a atividade reflexiva é condição de possibilidade das decisões livres. Se assim é, então filosofia tem a ver com liberdade. Explico melhor: se a atividade reflexiva leva-nos a ser livres, e se a filosofia permite-nos usar essa capacidade reflexiva com cada vez mais profundidade, então a filosofia pode ser vista como uma ferramenta essencial para a nossa liberdade, levando-nos a pensar mais claramente e, em conseqüência disso, a usar a capacidade de escolha em sua plenitude. O exercício da filosofia é a expressão mais profunda e plena da nossa liberdade. É a liberdade do pensar, do refletir, que nos leva a agir livremente. O exercício da liberdade pressupõe que reflitamos sobre as nossas vidas, as nossas ações, as pessoas que nos rodeiam, o país em que vivemos, as regras da comunidade a qual pertencemos, e as informações (verdadeiros ou falsas) que obtemos, etc. Esse é um resultado fundamental. Se surgir então a pergunta sobre o porquê de se estudar filosofia, independente dos interesses intelectuais de cada um, essa é uma resposta possível. Além disso, a relação entre filosofia e liberdade permite que a gente responda àqueles que dizem que o filósofo em nada contribui para o desenvolvimento da humanidade ou para a mudança (para melhor) da realidade. Se procurarmos mudar a realidade sem liberdade, na verdade estaremos mudando algo não segundo a nossa vontade, mas segundo a vontade dos outros. Uma outra lição que se pode tirar da relação entre filosofia e liberdade é que ela nos ajuda a compreender o porquê da insatisfação constante do filósofo, aquela que Hume sente e que o leva a passear ao longo do rio e a jogar gamão com os seus amigos. A insatisfação origina-se do fato de que a atividade filosófica, assim como a atividade teórica em geral, não parece ter um ponto final. Mas isso é exatamente o que a torna tão essencial à liberdade. O trabalho filosófico em particular e o teórico em geral não têm fim. Conceber um fim à atividade reflexiva é, de um certo modo, conceber o fim do exercício da liberdade. A gente só pára de refletir sobre os princípios que atuam como premissas de argumentos quando a gente se rende à superstição, à religião ou ao totalitarismo. Finalmente, pode-se dizer que a atividade reflexiva é auto-referente. Isso quer dizer que, mesmo para combatê-la, a gente tem que adotá-la. Esse é o erro de Sexto Empírico e de outros céticos que suspeitavam da atividade especulativa. Eles só podem combater a especulação de modo persuasivo se eles adotarem um procedimento especulativo. Eles só podem condenar uma teoria adotando outra. O que resta então é adotar uma teoria que resista a ataques, e que explique pelo menos alguns dos problemas que nos afligem. Mas como descobrir essa teoria, que não é mágica, como queriam os dogmáticos, mas que inevitavelmente se encontra na atividade intelectual, como negavam os céticos? No caso da filosofia, a gente tem que filosofar mesmo para negar a filosofia, como uma vez disse Aristóteles. A gente tem que ser filósofo mesmo se a gente desejar jogar fora a filosofia.

Publicado no jornal A Notícia, em 16 de Maio de 1993

5 comentários:

Tiago Jader Amancio disse...

O que voçê quis dizer nessa frase "A gente tem que filosofar mesmo,para negar a filosofia" não entendi o porque,pode explicar?




tiago jader 1ºc

prof. Paloma disse...

o autor do texto (Marco Antônio Franciotti)quis dizer que a atividade reflexiva está atuante até para rejeitar a filosofia. "Isso quer dizer que, mesmo para combatê-la, a gente tem que adotá-la" - para negar a importância da filosofia, é preciso refletir e argumentar, então acaba-se filosofando até mesmo para banir a filosofia!

Nathalia C.M. Pagliarini disse...

professora, eu entendi que apesar de as vezes parecer que a filosofia está longe de todas as outras coisas, da ciencia, do proprio homem, ela tem uma ligação, pelo fato da reflexão, o homem precisa refletir, precisa pensar para tomar decisões, isso de uma maneira é filosofar, e a ciencia tbm naum fica longe, ela precisa desta reflexão e até de questionamento, a reflexão pode até ser uma porta pra liberdade.No texto fla q até um filosofo pode ter sua religiao e pode crer em Deus, porem na hora de colocar no papel, colocar pros outros ele precisa ser mair realista, procurar a verdade, pq de qualquer maneira o que é Deus, ninguem sabe, e mesmo assim muitos acreditam, agora o que eu quero saber é, vc acha que tem mesmo como um filosofo ter uma religiao e acreditar em Deus? naum é meio superficial,pois, filosofar, é questionar obvio, e procurar verdades, coisas concretas e naum teoria, supertições.

nathalia cristina manzaro pagliarini 2°B

Camila Soares 2°B disse...

Bom Paloma , eu entendi que a Filosofar é um meio de ser livre , de buscar a liberdade, de querer mais do que os outros te oferecem como conhecimento , é questionar , ter a liberdade de pensar , agir e saber. Entendi também que o homem precisa refletir para tomar decisões e que refletir é parte da filosofia. Sendo assim , em todos os momentos da nossa vida , querendo ou não , estamos ultizando aos recursos da filosofia .. e que a filosofia está ligada a tudo e que é incessante essa busca do conhecimento.

Anônimo disse...

qual seria afinal a natureza da atividade filosofica?